Em uma longa carta aberta, no site da revista New Yorker (is.gd/UBRpON), Roth atacou o verbete sobre seu romance A Marca Humana. Segundo a Wikipedia, o protagonista, o professor universitário Coleman Silk, foi inspirado em um crítico de literatura chamado Anatole Broyard, figura manjada de Nova York. Errado, bradou Roth. Coleman Silk é, na verdade, Melvin Tumin, um sociólogo que foi seu colega na Universidade Princeton.
Assim como Silk da ficção, Tumin caiu em desgraça por usar, em sala, uma palavra de duplo sentido que poderia ter conotação racista. Referindo-se a dois alunos que nunca tinham aparecido na aula, Tumin perguntou se eles existiam mesmo, ou eram spooks. Spook quer dizer “assombração”, mas também pode ser um modo grosseiro de se referir a negros. Tumin não sabia porque nunca tinha visto os estudantes folgados, mas calhou de ambos serem negros. A casa caiu e recuperar a reputação foi um pesadelo de anos.
Moluscos de Okinawa
Diante da certeza sobre quem inspirou seu personagem, Roth usou um intermediário para pedir a correção. A resposta da Wikipedia foi engraçada: “Admitimos que o próprio autor é quem conhece melhor sua obra, mas requeremos fontes secundárias.” Daí a carta na New Yorker, a repercussão etc.
Fico imaginando que tipo de pessoa incluiu a informação errada. Um espírito de porco que pretendia irritar Roth? Um desavisado que simplesmente copiou o dado incorreto de outro lugar? Ou um supernerd que juga conhecer a obra de Roth mais do que o próprio autor? É chute puro, mas fico com a última opção. Porque não fazia ideia de quem colaborava com a Wikipedia, até ler, em uma edição recente da revista piauí, a reportagem “Cooperação Conturbada”, de Bernardo Esteves. O autor descreve um universo, digamos, peculiar. “É espantoso o tempo e o investimento emocional que centenas de usuários dedicam ao projeto”, afirma o texto.
Os “wikipedistas” brasileiros brigam, perseguem-se, recorrem a “tribunais” para decidir quem ganha a briga por determinado verbete. Enquadram-se na categoria de gente que o apresentador de TV Charlie Rose, numa entrevista com o fundador da Wikipedia, Jimmy Wales, disse “aspirar a um papel maior”. Assim, vemos que a Wikipedia transformou-se em meio de expressão para obcecados em geral. Eu, você, todo mundo conhece alguém que é uma enciclopédia ambulante. Que sabe tudo sobre as declinações da língua ucraniana, ou sobre as regras da pelota basca, ou domina a base teórica da ressonância magnética nuclear, ou recita de cor a lista de moluscos de água rasa em Okinawa (isso quando não entende de todos esses assuntos ao mesmo tempo).
Informação de fonte única
Se antes esses geninhos guardavam o conhecimento só para si, ou para um círculo mais próximo de ouvidos pacientes, agora podem desfilar sua sabedoria para o mundo, na Wikipedia. E aí entra uma crítica forte ao empreendimento de Jimmy Wales: não pagar nenhum centavo a seus dedicados colaboradores. Ele se defende lembrando que a Wikipedia não visa ao lucro e vive de doações. Diferente, por exemplo, do Huffington Post, que não pagava ninguém, mas deu muito dinheiro à sua criadora, Arianna Huffington.
A outra crítica, claro, é a falta de confiabilidade da Wikipedia, por permitir que qualquer um seja colaborador. Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, Wales deu uma resposta afiada. Lembrou que, durante muito tempo, a data do aniversário estava errada no verbete sobre ele próprio. E explicou: “Alguém copiou a data que estava na Britannica, e a Britannica estava errada.” Ou seja: não dá para confiar em informação de uma única fonte, ainda que seja a Britannica. Ou que seja a poderosa Wikipedia, a enciclopédia contra a qual Philip Roth, o grande, decidiu que valia a pena brigar.
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[Álvaro Pereira Júnior é colunista da Folha de S.Paulo]
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